Rosana Lamosa
‘Hoje ninguém se estabelece sem conhecimento’
Cantora de grande destaque nos palcos do Brasil e exterior, Rosana Lamosa é hoje reconhecida como uma das mais importantes sopranos brasileiras. Iniciou sua carreira internacional como solista do Stadttheater de St. Gallen na Suíça e dentre as produções aclamadas pelo público e pela crítica destacam-se: “Il Guarany”, em Lisboa; “Armide”, de Gluck no Festival de Buxton na Inglaterra; “Rigoletto”, em Detroit. Ela também excursionou pela Ásia e Austrália e, no Brasil, é presença freqüente nos principais palcos de ópera, em memoráveis montagens que vão de “La Traviata” a “L'Elisir D'Amore”; de “Carmen” a “La Bohème”; de “Don Giovanni” a “Manon” ou de “Magdalena”, de Villa-Lobos, ao “Anel do Nibelungo”, de Wagner, além das estréias mundiais da ópera “Alma”, de Claudio Santoro, e de “A Tempestade”, de Ronaldo Miranda. Desenvolve uma importante carreira como concertista em obras como “A Criação”, de Haydn, “Réquiem” e “Missa em dó menor”, de Mozart, “Carmina Burana”, “4 Últimas Canções”, de Richard Strauss, “Sinfonia n° 2”, de Mahler, e da “9ª Sinfonia”, de Beethoven, “Te Deum”, de Dvorak, “Magnificat” e “Cantata 51”, de Bach. Da crítica especializada, recebeu o Prêmio APCA de melhor cantora em 1996 e o Prêmio Carlos Gomes em 1999 e 2002 por sua carreira de destaque na música lírica. Sua discografia inclui as “Canções de Amor”, de Claudio Santoro e Vinícius de Moraes com Marcelo Bratke (selos Quartz/Clássicos), a ópera “Jupyra”, de Francisco Braga com a Osesp (selo Bis), as “Bachianas Brasileiras nº 5”, de Villa–Lobos com a Nashville Symphony Orchestra (selo Naxos) e o CD com a obra de canto e piano de Gilberto Mendes. Ela dedica-se também ao ensino como professora conferencista da Faculdade de Música da USP (Ribeirão Preto) e como professora e cantora no Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Rosana Lamosa iniciou os estudos musicais no Rio de Janeiro com Vera Canto e Mello e Alda Bonfin, aperfeiçoando-se mais tarde com Leilah Farah em São Paulo e com o maestro Franco lglesias no Center of Opera Performance de Nova York. Antes de sua mais recente apresentação, junto com a Orquestra Sinfônica Paulista, em Tatuí, ela cedeu entrevista à Folha Sinfônica. Entre dicas importantes e opiniões contundentes, ela revelou um detalhe pouco conhecido: além de exímia cantora, é formada em jornalismo. Colaborou com a entrevista o professor Marcos Baldini.
Quando e como você iniciou seus estudos musicais? Comecei a estudar canto quando tinha 17 anos de idade e entrei na faculdade para fazer jornalismo. Passei a estudar canto no período do curso universitário. Formei-me em jornalismo, trabalhei em publicidade durante três anos até que eu tive coragem de achar que eu poderia seguir um caminho na música. Algumas professoras foram contra, outras incentivaram, havia que achasse que eu era louca de fazer este tipo de música. Quando eu fui estudar, não fui querendo cantar repertório erudito, na verdade eu queria cantar repertório popular, mas acabei descobrindo isso por conta de uma professora que só queria alunas que fossem seguir esse caminho. Fui tendo aula com ela e acabei me apaixonando pela ópera.
Como você elabora o repertório dos concertos? Depende de cada peça. O repertório de concerto é algo que eu gostaria muito de explorar mais do que exploro, pois faço muita ópera. Fazer ópera requer muito tempo, você fica muito presa em ensaios. Repertório de concerto é um repertório que eu gostaria de fazer até muito mais. Com relação à peça feita em Tatuí – As Quatro Últimas Canções, de Strauss – é uma peça controversa para mim. Várias vezes que cantei, dizia para mim mesma: “nunca mais quero cantar essa peça”. É uma peça realmente muito difícil e que demanda um entrosamento, um conhecimento entre quem vai estar do seu lado no palco. Essa cumplicidade faz toda a diferença no resultado final. Então, é uma peça que eu tenho muito medo de aceitar quando eu não conheço a pessoa, ou não conheço o trabalho. Como tinha ouvido muito boas referências da Orquestra de Tatuí, resolvi arriscar sem conhecer. Mas, de uma maneira geral, o repertório de concerto é um repertório sobre o qual você poucas vezes opina. O cantor solista tem essa ilusão de achar que tem um domínio sobre sua carreira – infelizmente não é bem assim. Muitas coisas eu pude cantar, eu pude escolher, mas na verdade na maior parte das vezes eu fui convidada para cantar e geralmente quem escolhe o repertório é quem está convidando. Na linha da minha carreira, poucas vezes tive o poder de decidir o que fazer.
O que um aspirante a cantor lírico deve conhecer e saber? O Brasil não é um país de tradição no canto lírico, então nós temos que “correr atrás do prejuízo”, como costumamos falar. Hoje em dia não se consegue mais estabelecer uma carreira quem não tem bons conhecimentos musicais. Nas gerações anteriores, muitos cantores só tinham voz. Hoje esse perfil não tem mais espaço, pois um bom cantor precisa saber bem música, saber ler bem, idealmente saber tocar um piano, um instrumento. Eu toco piano suficiente para eu estudar. Gostaria de tocar melhor, mas eu consigo administrar meu estudo com o que tenho hoje. Eu vejo que, nas próximas gerações, as pessoas precisam estudar mais, precisam ter um conhecimento melhor, saber se acompanhar mesmo. Esse é um investimento que faz toda a diferença. Também acho que saber Línguas é essencial. No canto geralmente estamos contando alguma coisa, contando uma história. E precisamos saber nos comunicar, saber o mínimo necessário ou no mínimo aquilo que você está cantando. Então, acho que para quem está começando primeiro tem que buscar uma boa base, bons estudos de música. A voz em si é um caminho mais a longo prazo, o canto demora muito, é preciso ir ganhando tempo e investindo em coisas paralelas enquanto a voz vai avançando.
Quantas horas de estudo diário você pratica e quais os principais detalhes técnicos que um cantor deve abordar? Tudo é muito relativo, depende do que eu estou estudando, depende do que eu tenho para cantar, depende se estou ensaiando uma ópera ou não. Se estou ensaiando uma ópera eu não canto, porque já canto nos ensaios. Temos que saber nos poupar. Geralmente o processo de ensaio de uma produção de ópera é muito exaustivo vocalmente. Se você canta todo dia, você chega destruída no dia da estréia. É preciso aprender a administrar, cantar quando precisa e poupar quando necessário. Para quem está em fase de formação, acho que é fundamental estudar diariamente, não muito tempo, mas vocalizar diariamente, ter controle... como um exercício físico: quanto mais você exercita com rotina e com freqüência, tanto mais estará em forma. É melhor praticar um pouco todos os dias.
Durante o período em que você estudava, quais as dificuldades técnicas que exigiam maior atenção? Acho que um grande exercício quando estamos estudando é aprender a escutar. Nunca vamos ser capazes de nos ouvirmos realmente, a não ser através de uma gravação. Eu acho que hoje temos recursos de aparelhos que gravam com uma qualidade bem razoável, que dá para praticamente perceber a realidade de sua voz. Eu acho que as pessoas têm que tomar coragem de se ouvir, perceber o que estão fazendo. O estudo do canto é um estudo muito abstrato, muito subjetivo. Para ensinar o canto é muito difícil, tem que se usar de metáforas, linguagens, imagens, para poder tentar transformar aquela imagem em som. Então, o trabalho que eu acho que é efetivo e que ajuda o cantor a evoluir é um trabalho no qual ele tenha plena consciência: estar super concentrado na aula, estar atento, se abaixou a língua, se levantou a boca, boca, se apoiou, se desconcentrou... cada nota demanda um tipo de energia. Essa total consciência do processo de emissão do som leva muito tempo para se dominar, mas tem que buscar, tem que ser uma busca, sempre, desde o primeiro dia que você começa a estudar canto. Existe a imitação, que é uma referência fundamental, é preciso sempre ouvir. Mas tem que buscar isso dentro de você, ou pelo menos buscar a conscientização disso. Sem a consciência, ninguém evolui só imita e, geralmente, imita o ruim. O estudo precisa ser extremamente concentrado e o que eu vejo muito – eu pouco leciono, só no Festival de Campos do Jordão onde eu tive a oportunidade de lidar com o ensino – são alunos com uma grande preocupação só com a voz. Sempre digo: não pense na voz, não é isso, tem que esquecer a voz, tem que buscar outros caminhos, sensações, respirações, apoio... Isso funcionando de forma correta, a voz sai automaticamente .
Quais foram os principais personagens em sua carreira operística? Aqui no Brasil eu fiz muito a minha carreira meio que levada pelas oportunidades. Eu tive grandes oportunidades de fazer papéis – alguns quando estava jovem, os quais hoje faria muito melhor que na época que fiz, naturalmente. Há alguns papéis que eu gostei muito de fazer como a Sonâmbula, mas que são papéis difíceis. Uma das produções que eu tive enorme prazer em participar foi “Manon”. Gosto muito do repertório francês, me identifico, acho que foi um papel no qual tive oportunidade como artista, não só como cantora – mais como artista do que como cantora.
O que não pode faltar no repertório de um grande cantor? Essa coisa de “grande cantor” é engraçada. Falo isso quando leciono: as árias antigas. Ninguém gosta de estudar, mas eu acho um pecado – se você canta bem aquilo, o resto é fácil. Árias antigas são muito negligenciadas, mas são importantes. Essas árias são onde você trabalha a voz, onde exercita o desenvolvimento da voz. Se você vai ter um grave ou um super agudo, isso é uma natureza e você pode desenvolver paralelamente, mas cantar, dar o recado, é o meio.
Como tem sido sua experiência no festival de Campos do Jordão? Tem sido muito boa nesse sentido de que quando ensinamos, aprendemos muito. Eu nunca quis lecionar porque com a vida que eu tenho não dá para ter nenhuma rotina e acho que os alunos iam me odiar porque desmarcaria mais do que lecionaria. Acho que ainda não está no momento. Tenho cantado bastante, então não dá para ter uma rotina de estar sempre no mesmo lugar e ter alunos com regularidade. Em Campos do Jordão, onde ficamos três semanas, conseguimos fazer um trabalho que me surpreende. Este ano tivemos um número de inscritos quase que equivalente ao dos grandes instrumentos como piano e violino. Foram mais de 120 alunos inscritos e só temos seis vagas, nunca tivemos tantos inscritos. Isso é sinal de que as pessoas estão interessadas em estudar. Nesses anos nos quais participamos conhecemos pessoas com vozes muito interessantes. É muito difícil tentar mudar a cabeça de alguém ou ajudar alguém em três semanas. O que buscamos em Campos do Jordão é abrir a mente para que cada um descubra suas possibilidades, não é necessariamente um trabalho só vocal. Também tentamos buscar ajuda de algumas coisas que observamos porque eu mesma tenho dificuldade. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro é muito difícil ter professores de canto. Eu sinto muita falta de alguém que me escute. Por sorte sou casada com um cantor que é uma pessoa em quem eu confio tecnicamente, que sempre me orienta, uma pessoa que eu valido a opinião. É muito importante ser ouvido. O aluno tem que ser ouvido e buscar o que cada pessoa diz e tentar entender o que isso quer dizer, o que está fazendo, se isso é bom ou ruim, tentar traduzir isso para sua pessoa, para seu organismo. Espero que Campos do Jordão continue sendo um festival de ponta como é.
Como é sua parceria com o tenor Fernando Portari? É tudo de bom, porque antes de estarmos juntos como marido e mulher, sempre admiramos o trabalho um do outro. Nós nos conhecemos cantando num concerto e só viemos a namorar alguns anos depois. Eu voltava da Europa e, quando cheguei, fiquei surpresa de descobrir que tinha um cantor naquele padrão. E ele disse que sentiu a mesma coisa quando me escutou. A partir daí surgiu essa grande admiração, fomos muito felizes trabalhando junto, mas nunca tínhamos feito uma ópera. Até que fizemos e nos apaixonamos. Tem sido um caminhar juntos muito bom. A vida do cantor é muito difícil, é meio cigana, estamos sempre pulando de um lugar para outro, e só uma pessoa que faz a mesma coisa poderia entender isso. E no sentido do trabalho também, pois é uma pessoa que eu confio e acredito tecnicamente, que caminha ao meu lado e com quem eu tive muitas oportunidades de trabalhar... isso me enriquece muito. A história do repertório que sonhamos que o Brasil ainda tenha – que é o Teatro do Repertório - que você tenha uma temporada com pessoas com quem você já tenha uma intimidade, que possa trabalhar com pessoas com quem você já tem um conhecimento, tudo isso enriquece muito e a pessoa também. Então, acho que o fato de eu ter tido muitas chances de trabalhar com o Fernando certamente me ajudou muito no meu enriquecimento como cantora, independente do marido.
O Brasil se tornou um país mais exigente em óperas? Faço parte da primeira geração de brasileiros que estão vivendo de música efetivamente. Vivendo de música mesmo, vivendo do canto. Na geração anterior à nossa todo mundo tinha outro emprego, era muito difícil viver de música. Acho que efetivamente faço parte da primeira geração que pode dizer que vive disso. Isso se refletiu no mercado porque temos hoje um número relativo de cantores e é possível montar alguns títulos só com cantores nacionais. E isso é algo recente, de 25 anos atrás. Nós somos reflexo disso, de uma oportunidade que se criou, inclusive tendo na direção de teatros em São Paulo e no Rio de Janeiro pessoas que também começaram a acreditar que nós poderíamos desempenhar papéis importantes no teatro de ópera – falo de Jamil Maluf de Malheiros, que criou o Festival de Ópera em Manaus. Há 30 anos vinham as companhias da Europa com cantores, cenário, figurino prontos... existia um elenco nacional que fazia uma ou outra récita, mas o cantor só evolui se está num palco. Se a nossa geração pôde evoluir foi porque teve oportunidade. Só podemos evoluir se estivermos cantando, no palco. Ninguém evolui fazendo aula em casa. Essa é a realidade.
Você não gosta de ensaiar no dia da apresentação. Há algum outro ritual? A vida do cantor tem que ser bastante regrada, tem que dormir bem – não só em quantidade, mas qualitativamente -, beber muita água, alimentação ser boa, estar sempre em forma exercitando, mas não cansando a voz. Cada um tem que descobrir seu limite. Não é recomendável ficar no frio, evitar ar condicionado...
Você se arrependeu de deixar o jornalismo? Não porque adorei fazer a faculdade. O jornalismo me foi muito útil e acredito que virá a ser mais ainda na medida em que eu diminuir o meu canto. Já apresentei muitos programas para a TV Cultura quando morava em São Paulo. Tinha essa curiosidade e só saí porque eu não tinha autonomia sobre a redação do texto e, para mim, era difícil porque quem escrevia não tinha conhecimento sobre o assunto e parecia que eu estava afirmando... Eu acho que ainda vou trabalhar com jornalismo dentro da música.
entrevista dada ao site Folha Sinfonica
https://www.folhasinfonica.com.br/
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